domingo, 8 de abril de 2007

Crise dos reféns: a história secreta

Na origem da prisão dos 15 marinheiros britânicos, a incrível tentativa dos EUA de seqüestrar, num ataque com helicópteros, duas altas autoridades do Irã


Ao anunciar, em 5 de abril, a libertação dos quinze soldados do Reino Unido capturados treze dias antes, o presidente iraniano Mahmoud Ahminejad sentiu-se à vontade para dar lições de democracia e transparência, aos líderes ocidentais que o acusam de obscurantismo. “O governo britânico pode não ter sequer coragem de dizer a seu próprio povo o que ocorreu”; “Que atitude a da União Européia, que se posiciona sem investigar os fatos” foram agumas de suas frases. Ahminejad tinha trunfos para comemorar vitória antes mesmo de terminada a disputa.


Pouco antes, começara a circular pelo mundo a história que teria levado o regime de Teerã a retaliar contra os 15 marinheiros. Em 11 de janeiro, os Estados Unidos cometeram um ato selvagem, uma afronta profunda ao direito internacional. A operação – a tentativa de seqüetrar dois homens-chaves do governo do Irã, que estavam no Iraque em visita oficial – fracassou. Mas gerou efeitos colaterais e, mais tarde, uma série intrincada de pressões e ameaças, envolvendo EUA, Reino Unido e Irã. Os fatos foram divulgados num meio prestigioso porém de circulação restrita: o jornal londrino The Independent. Num ambiente de crise, poderiam rapidamente se espalhar. Teriam repercussão semelhante à da divulgação de tortura praticada pelo exército norte-americano, na prisão de Abu Graib. É provável que a solidariedade com Washington tenha estimulado Londres a fechar um acordo com Teerã.

Discurso de Bush, possível senha para o ataque

Na operação em Arbil, mais uma peça da campanha para demonizar o Irã – e um sinal de que a guerra não é hipótese afastada


O autor do furo é o jornalista Patrick Cockburn, um dos maiores especialistas em Oriente Médio na imprensa internacional. Na terça-feira, o Independent destacou seu texto em manchete: “O raid fracassado que levou à crise dos reféns”. Em seu relato ressaltam dois aspectos: 1) não há hipótese de erro: o exército norte-americano agiu de modo deliberado para seqüestrar governantes de um país soberano; 2) a ação malograda ocorreu horas depois de um discurso especialmente virulento do presidente George Bush contra o Irã. Possível conclusão: a Casa Branca preparou uma operação espetacular para sugerir que autoridades de Teerã têm vínculos com a onda de terror no Iraque e criar, entre a opinião pública internacional, clima favorável a uma ação militar


Segundo Cockburn, o ataque ocorreu em Arbil, cidade na região curda do Iraque. Os alvos foram Mohammed Jafari, segundo homem do Conselho Supremo de Segurança Nacional (que coordena as políticas de segurança e o programa nuclear do Irã) e o general Minojahar Frouzanda, chefe de inteligência da Guarda Revolucionária Iraniana. Jafari e Frouzanda cumpriam intensa agenda oficial no Iraque. Avistaram-se presidente do país, Jalal Talabani, e com o presidente do Governo Regional Curdo, Massoud Barzani. Participariam de uma cerimônia no escritório consular que o Irã mantinha em Arbil. Transportadas por helicópteros, as tropas norte-americanas atacaram este local, numa ação-relâmpago. Mas algo falhou: no momento do assalto, nenhum dos dirigentes iranianos encontrava-se no escritório. Em seu lugar, foram capturados, talvez por engano, cinco funcionários de baixo escalão.


Se a operação tivesse sucesso, a captura dos líderes iranianos coincidiria com a fala agressiva de Bush. Em 10 de janeiro, num discurso à nação, ele afirmou, referindo-se à ocupação do Iraque: “o Irã está oferecendo apoio material para os ataques contra tropas norte-americanas”. Em seguida, identificou este país, ao lado da Síria, como “os maiores inimigos” dos EUA.

Das confrontos à mesa de negociações

Todas as evidências sugerem que a barganha negada por Blair e Bush existiu


Além de não terem sido desmentidas, as informações de Patrick Cockburn são coerentes com os desdobramentos do episódio. Em 4 de fevereiro, nova provocação contra o Teerã, provavalmente disparada de Washingnton: o segundo secretário da embaixada do Irã em Bagdá, Jalal Sherafi, desaparece, levado por homens com uniforme militar. Dias depois, a resposta: numa ação em Kerbala, cidade sagrada xiita ao sul de Bagdá, um comando tenta seqüestrar cinco soldados norte-americanos. Como não têm êxito, os seqüestradores assassinam as vítimas. Washington atribui o atentado a milíticas a serviço do Irã.


Em 23 de março, Teerã volta à carga e prende os 15 marinheiros britânicos. A primeira reação do ministro Tony Blair é arrogante: ele exige a libertação incondicional e garante que não negociará com os captores. Em Washington, Bush reforça suas palavras: “Apoio firmemente as declaração do primeiro ministro, de que não haverá barganha em torno dos reféns”. Rapidamente, a realidade contraria as palavras. Em 2 de abril, Ari Larijani, o número um do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã, conhecido por sua habilidade diplomática, contacta jornalistas britânicos e anuncia que tentará abrir diálogo com Londres. Um dia depois, afirma, em entrevista à rádio estatal que “o governo britânico iniciou negociações diplomáticas com o ministério do Exterior iraniano”. A notícia é, então, confirmada pelo governo Blair, ainda que este evite admitir a mudança de postura. Um porta-voz do primeiro-ministro afirma que ele “permanece comprometido com a resolução do problema por meios diplomáticos. O Reino Unido propôs relações bilaterais diretas e espera uma resposta iraniana”.


Os sinais de que a negociação estava em curso – e já produzia resultados concretos – tornaram -se mais densos em 4 de abril. Jala Sharafi, o diplomata iraniano seqüestrado em Bagdá, reapareceu subitamente. Além disso, um funcionário oministério das Relações Exteriores do Iraque disse a Cockburn, do Independent, que seu governo estava trabalhando “intensamente” pela libertação dos cinco diplomatas iranianos seqüestrados em janeiro pelos EUA.

Guerra, ameaça presente

Os fundamentalistas estão fortemente encastelados nos Estados, tanto em Washington quanto em Teerã. A sociedade civil pode ser fundamental para a paz


O desfecho começou na própria quarta-feira, 4 de abril. Mahmoud Ahmadinejad, o presidente do Irã, condecorou os militares que haviam capturado, doze dias antes, os marinheiros britânicos. Na mesma ocasião em que atacou o ocidente, anunciou que os reféns seriam soltos, qualificando o gesto como “um presente ao povo inglês”. Sentia-se fortalecido -- tanto pelos sinais de que Washington e Londres estavam dispostas a colaborar quanto pelos indícios de que a revelação dos fatos passados em 11 de janeiro.


O episódio é carregado de sentidos. Os governos dos EUA e Reino Unido voltaram a sofrer uma dura derrota no Oriente Médio. Seus planos estratégicos para a região, que equivaliam a uma modernização conservadora, parecem cada vez mais distantes. Dessa vez, dimensão mais importante do fracasso é a moral. Só mesmo um ato insano da Casa Branca poderia ter dado a alguém como Mahmoud Ahmadinejad condições de posar como defensor da democracia. Por outro lado, certas conquistas políticas típicas do ocidente parecem cada vez mais necessárias para enfrentar os desafios da globalização em crise. Ainda que a mídia esteja em crise, a capacidade de investigação e a coragem do Independent estimulam a valorizar a liberdade de impresnsa e o direito à informação.


Atolados no Iraque e Afeganistão, crescentemente isolados no mundo árabe, devido a seu apoio incondicional a Israel, EUA e Grã-Bretanha conservam, contudo, uma perigosíssima capacidade de agressão. Assim como nos preparativos para a invasão do Iraque, a Casa Branca demonstra estar novamente disposta a forjar fatos, para entorpecer a opinião pública mundial. Um ataque militar contra o Irã, claramente desejado pelos circulos neoconservadores que influenciam o governo do presidente Bush, parece fazer parte do cardápio de opções de Washington. Seria uma atitude de desespero, sem grandes repercussões estratégicas (porque não se pensa em invadir o país, mas em puni-lo), mas capaz de provocar enormes perdas humanas, de turvar ainda mais as já delicadas relações entre ocidente e mundo árabe e de desencadear uma escalada útil aos fundamentalistas de ambos lados. Estes encontram-se fortemente encastelados nos aparelhos de Estado – tanto em Washington quanto em Teerã. Por isso, são tão importantes as iniciativas pacifistas da sociedade civil. Não seria má idéia programar, no universo dos Fóruns Sociais, uma iniciativa com poder real e símbólico de propor um verdadeiro diálogo entre grandes civilizações do planeta.

Os fios da meada

Abaixo, os links de hoje:


>No Le Monde Diplomatique

++Sobre as ambições norte-americanas no Irã:

Na linha de mira

Quando os Estados Unidos provocam um confronto


O direito à tecnologia


++Sobre o regime dos aiatolás:

As engrenagens do Irã teocrático

Poderes militares de Teerã

++Sobre os neoconservadores:

Onze textos em nossa Biblioteca


> Outras fontes:

++ The Independent é um jovem jornal londrino, fundado em 1986, como alternativa concentração da mídia britânica em mãos do magnata australiano Roberth Murdoch. Tem tiragem diária de cerca de 250 mil exemplares. Acesse o jornal ou saiba mais sobre ele na Wikipedia (em inglês).

++ A reportagem em que Patrick Cockburn relata a tentativa frustrada de seqüestro das autoridades iraquianas pode ser lida (em inglês) aqui.

++ Patrick Cockburn, nascido em 1950, é correspondente no Oriente Médio desde 1979. É autor, entre outros livros, de The Ocupation, sobre a guerra contra o Iraque. Há, também na Wikipedia, um breve verbete (em inglês) sobre ele.


> Nossa imagem

Dawn Patrol, de Arby Reed, disponível em licença Creative Commons. Pode ser reproduzida e editada, desde que para fins não comerciais e com crédito do autor. Outras fotos de Arby Reed podem ser vistas aqui. Creative Commons mantém um excelente serviço de busca de imagens. Confira.